terça-feira, 26 de agosto de 2014

O Amor nos Tempos do Consumismo




   Enquanto a madrugada se despede e a insônia se afasta, deixo os pensamentos brincarem sem paradeiro fixo. Entre as rotinas do trabalho e a corrida na praça. Nos objetivos a curto prazo e as cicatrizes da alma. Uma viagem leve, "sem olhar para trás com rancor", como escreveu genialmente Noel Gallagher em "Don't Look Back in Anger". E nessa tola sabedoria que me acompanha, recordo que eu tinha a certeza absoluta que o mundo seria meu. Hoje, o que mais desejo é dividir o pouco que sou e me tornar inteiro com outra
metade. Mas vejo que os tempos são outros.
   Vamos lá: você chega na balada e faz a observação básica do que está em oferta. Sorrisos perfeitos, corpos esculturais, cabelos milimetricamente penteados, roupas de grife, perfumes importados, uma conversa rasa pré-fabricada para abordagem. Num segundo estágio, pela dificuldade do diálogo ocasionado pela música alta, se descobre se o celular é penúltimo modelo, se o carro é zero e se mora numa cobertura. É "o amor nos tempos do consumismo". Todos nós estamos numa imensa prateleira onde, na primeira oportunidade, o produto não atender plenamente nossas necessidades, será descartado. E como a grande maioria tem seus objetivos engessados, o "amor" acaba se algo foge do parâmetro, se der algum defeito. E voltamos à prateleira.
   Novamente, estou parafraseando Gabo no genial "O Amor nos Tempos do Cólera" pra descrever o momento atual das relações humanas. Pelo pensamento capitalista que norteia nossa sociedade, não é preciso mais "ser". Basta "ter". Tanto que hoje, dificilmente consegue-se conversar com uma pessoa sem que essa use a "bengala digital" pra mostrar algo, que normalmente, não foi ela que fez ou produziu. Ou pra mostrar o que sente, mesmo que as palavras não sejam dela. E de algum modo, o imediatismo já deixa pra trás, trocando por um novo vídeo, foto ou fuga.
   Pelas experiências vividas, descobre-se que o amor em sua essência é dedicar o que temos de mais valioso ao outro. E não falo de carros, apartamento ou viagens. Falo de nosso "tempo". Se você tiver dinheiro, você dá um carro de presente, mas é capaz de dedicar seu tempo a alguém? De deixar de ir na academia pra fazer a janta todas as noites, ou de ir na cabeleireira pra passar as roupas do "seu amor"? Somos fruto de uma geração que "terceiriza" o amor materno em creches e depois se espanta quando vê que não se conhece os filhos. Ficamos tão presos à nós mesmos que não vemos o quanto as pessoas precisam de nós. E o quanto precisamos delas.
   Resumo da ópera: todos querem ser amados. Poucos são capazes de amar, se doar. E como o tempo é implacável, haverá um instante que o "ter" não bastará e teu "ser" estará exposto. Sem tempo de recuperação. Pois, se não encontrarmos as respostas em nós mesmos, jamais responderemos as perguntas de quem amamos. E deixaremos de ser a "série limitada" ou o "sonho de consumo" da prateleira. Daquelas que não se reconhece com os olhos.
   Somente com o coração.
 

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