Ele se apoiava com dificuldade. Tentara se levantar da cama, mas a temperatura amena de outono transmitia conforto à sua impotência. Aguardara pacientemente a chegada da enfermeira com o seu café matinal. Admirava os raios de sol que invadiam a janela entreaberta e os desenhos que se formavam em sua retina cansada. Mesmo com a visão enebriada, tudo parecia mais claro.
- Bom dia, senhor! Desculpe meu atraso.
- Bom dia, enfermeira! Estou numa fase em que não reclamo os atrasos. Apenas agradeço as chegadas.
- Me impressiono como o senhor ainda consegue manter seu bom humor...
- Enfermeira, meus músculos se foram, mas meu sorriso vai permanecer até o fim.
- Que bom! Ando cansada de pessoas mal humoradas...
- É que eles não possuem uma enfermeira tão bela e gentil.
- Obrigado, senhor. Já ganhei meu dia hoje! Quer que eu arrume seu cabelo?
- Que cabelo? Os últimos que haviam em minha cabeça foram buscar fichas para ligar de um orelhão e não voltaram mais.
- Orelhão? Nem existe mais isso, senhor.
- Pra ver só, enfermeira, há quanto tempo não tenho cabelo. Só gostaria que me ajudasse a sentar mais próximo da janela.
A enfermeira ajuda o senhor a levantar-se e o desloca com dificuldade até uma cadeira. Ele observa a paisagem pela janela do hospital com satisfação. Do quarto andar, consegue uma visão ampla da rua, da pressa dos carros, das pessoas e seus passos incessantes, dos pássaros e seus vôos flutuantes.
- O que o senhor gosta tanto de ver pela janela?
- A dádiva da vida. E como ela costuma ser irônica com a nossa petulância.
- Como assim, senhor?
- Passamos a vida toda achando que temos razão. Que escolhemos a profissão certa, o time certo, o carro certo, a ideologia certa, o partido certo. Somos tomados por uma arrogância e vaidade, que parece que qualquer palavra que contrarie nosso pensamento, nos agride.
- E por que o senhor fala em ironia?
- Porque a única certeza é a morte, enfermeira.
- Credo, por que o senhor fala uma coisa dessas???
- Calma... A ironia é que ficamos tão presos à nossas "certezas" que esquecemos que as dúvidas é que nos enchem de vida. Elas é que nos ensinam o que realmente é valioso. E quando conseguimos compreender isso, o nosso corpo já não responde aos comandos da cabeça...
- Mas isso parece tão triste, senhor.
- Triste seria se não se percebe isso em algum instante, enfermeira. Veja as pessoas correndo alucinadas, com seus telefones incessantes, buzinas, tráfegos. Alguma delas consegue sentir o calor dessa manhã, como uma carícia divina em nossa pele? Ou observar a leveza dos pássaros saboreando sua liberdade ao vento?
- Pois é, senhor. Com essa crise, ninguém tem tempo pra nada. Todo mundo correndo atrás de dinheiro, de status...
- Sim, enfermeira. E quando chegar na minha idade, sabe o que vão querer?
- O que, senhor?
O senhor se levanta com muito esforço e abraça a enfermeira com o máximo de força que possui.
- Isso, enfermeira. Trocariam tudo o que construíram pelo abraço e atenção de alguém que se ama e o faz sentir-se amado.
A enfermeira ficou em silêncio. Surpresa por aquele abraço e palavras.
- Pode ir, enfermeira. Estou bem. Vou ficar apreciando o mundo e suas sutilezas.
- O senhor deseja mais alguma coisa?
- Sim, enfermeira. Só desejo que leve meu sorriso e passe adiante. É o bem mais precioso que possuo e ainda posso repartir.
Cristian Ribas
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